Fanny 100

101 anos em meio ao turbilhão

Gustavo Sugahara


“Humanidade, Ciência, Cultura, Música e Arte são as
estrelas que brilham e te iluminam”.
O teu pai que te ama
Ruwin 29.IV.29

 

A epígrafe acima foi retirada do belíssimo livro feito pelo Cláudio Ricca sobre a sua mãe Noemi, irmã da Fanny. Da autoria de Ruwin, pai das duas, a frase foi escrita num pequeno “livro de autógrafos”, recebido pela Noemi quando completou 10 anos de idade.

É curioso como a música e a arte são destacadas para além do grande grupo “cultura”. Gosto de pensar que foi intencional, inclusive a “ordem”: A “humanidade” em primeiro lugar.

Celebro os 101 da Fanny com algumas notas sobre o que considero ser a sua principal, ancestral, e não intencional, herança: o compromisso ético com o humanismo vivido, fundado na tolerância e num ideal de liberdade emancipadora.

101 anos em meio ao turbilhão

Cresci com a sensação de que a minha avó Fanny sempre foi um pouco exagerada em relação aos “riscos do mundo exterior”.

Lembro dos alertas de cuidado serem muitas vezes acompanhados de histórias muito trágicas vivenciadas por ela. Recordo, por exemplo, da história de um acidente doméstico onde uma criança de um vizinho teria ingerido algum alimento contaminado com vidro, e falecido. 

Só depois, ao tornar-me pai, é que consigo perceber que, afinal, não é tão simples manter o sangue frio enquanto um dos seus filhos sobe alto numa árvore num belo dia de chuva. 

Para além disso, ao conhecer o contexto de extrema violência vivido pela Fanny ao longo de parte significativa da sua vida, inclusive durante a infância, e ao vivenciar o ressurgimento em força de ideologias abertamente xenófobas e racistas, tenho de admitir que, afinal, muitas daquelas preocupações não eram infundadas.

Se gerir o cotidiano, isto é, roupas limpas, comida na mesa, crianças na escola, já é um desafio para qualquer família, nem consigo imaginar o que significam estes desafios nos contextos de guerra vividos pela Fanny.

Quando partilhei a notícia que tinha entrado num programa de mestrado em Portugal, recordo que a Fanny manifestou preocupação com a extrema direita na Europa. Naquele início do século XXI, a xenofobia, o fascismo, e o neo-nazismo, estavam muitíssimo fora de moda, e qualquer comparação entre indicadores sobre violência e racismo entre Portugal e Brasil, indicavam que eu só poderia esperar uma mudança de ambiente positiva.


"Com a substituição radical do ideal de solidariedade entre pessoas e povos, pela ideologia do individualismo e da meritocracia, ganharam força os que apostam nos discursos do medo e da corrupção generalizada"


Infelizmente, as conquistas sociais do pós-guerra não conseguiram erradicar as profundas desigualdades que ainda persistem em diversas regiões do mundo. Ainda pior, em muitos países, inclusive naqueles considerados desenvolvidos, essas conquistas têm sido gradualmente desmanteladas.

Com a substituição do ideal de solidariedade entre pessoas e povos, pela ideologia radical do individualismo e da meritocracia, ganharam força os que apostam nos discursos do medo e da corrupção generalizada, fechando cada vez mais a porta para a tolerância das diferenças, e para a construção de soluções coletivas, tão necessárias para enfrentar as graves crises que temos enfrentado.

Devemos Discutir Tudo

Em meados dos anos 1990, descobri um serviço que viria a ser muito popular, o Skype. Com ele, podia fazer chamadas internacionais utilizando a internet, pagando um custo irrisório comparado com a única alternativa na época. Meu grande problema é que não tinha uma única pessoa para ligar. 

Felizmente sabia quem, não apenas partilharia o mesmo entusiasmo, como também poderia fazer bom uso prático desta tecnologia revolucionária. Com a agenda de telefone em mãos, eu e a Fanny ligamos para vários países diferentes da Europa. Mesmo nas chamadas em Alemão (que até hoje não domino), era perceptível a "surpresa", sempre seguida de grande alegria. Até hoje não sei ao certo o segredo, como é possível manter amizades tão longevas e tão distantes? Suspeito que a resposta esteja relacionada com o tal “compromisso ético”.

Também cresci acreditando que a família da Fanny e do Acílio tinha uma raiz de valores muito clara, quase uma dedução lógica do contexto histórico, das amizades, e das vivências pessoais de cada um deles.


"Foi com muita tristeza que descobri ainda em criança, que para muitos judeus, um asiático não poderia ser judeu, não bastava ser filho e neto de mulheres judias, era preciso ter cara e sobrenome de judeu"


Da ligação com grupos progressistas em Angola, ao acolhimento de jovens perseguidos pela ditadura no Brasil, parecia-me quase lógico que o espectro político variava entre alguns revolucionários tímidos, aos sociais democratas pouco convictos. Seríamos uma “família típica de judeus”.

Foi com muita tristeza que descobri, ainda em criança que, para muitos judeus, um asiático não poderia ser judeu. Não bastava ser filho e neto de mulheres judias, era preciso ter cara e sobrenome de judeu. Infelizmente, o judaísmo não confere valores éticos mágicos aos que o professam, também podemos ser misóginos, classistas, racistas e xenófobos, como qualquer outro ser humano. 

Mais tarde, com o ressurgimento dos movimentos protofascistas mundo afora, também esfumaçou-se a minha pueril lógica determinista do espectro político ideológico da família Gelehrter da Costa Lopes. Sentimos na própria pele os efeitos nefastos da “destruição dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas”, o que, segundo o historiador Eric Hobsbawm, é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do séc. XX.

Tive o privilégio de poder construir uma relação com a família da Noemi, muitos deles ainda a viver próximos da linda cidade do Porto. Em uma das minhas visitas recentes, tive a oportunidade de assistir uma entrevista fantástica com a Noemi sobre a ascensão do Nazismo e o período da guerra. 


"O que chama atenção no pensamento destas irmãs é o ferrenho apreço pela liberdade. Uma liberdade vivida, muito mais profunda, complexa, e solidária, do que a ardilosa síntese que reduz a liberdade ao ato de comprar e vender"


A profundidade da análise, e a forma como a faz, são extraordinárias. Ressoam fortemente nos tempos em que vivemos. Por um lado, porque ao descrever a ascensão do nazismo, faz uma cartografia muito semelhante a da ascensão do Bolsonarismo, no Brasil, e do Venturismo, em Portugal. Por outro, e acho que é a parte que destacaria desta entrevista,  a noção clara de que, apesar das atrocidades cometidas pelos governos, não faz sentido condenar um povo todo por elas.

Noemi lembra bem a diferença entre o nazismo e o povo alemão, recorda, por exemplo, momentos com as amigas na Alemanha, que estupidamente passaram a vestir o fardamento da juventude hitleriana (...) “só pedia para essas minhas amigas para não andarem de braços dados comigo na rua (...), e recorda também o gesto solidário de uma vendedora alemã que trabalhava no bairro em que viviam. Esta, ao tomar conhecimento da decisão de Ruwin de deixar a Alemanha, tentou demovê-lo e afirmou que “se fosse por questões de dinheiro” poderia tentar ajudá-los. Em outra passagem, Noemi expressa o seu repúdio à guerra, cujo o resultado é só a destruição de tudo o que há de mais belo neste mundo. 

O que chama atenção no pensamento destas irmãs é o ferrenho apreço pela liberdade. Uma liberdade vivida, muito mais profunda, complexa, e solidária, do que a ardilosa síntese que reduz a liberdade ao ato de comprar e vender. Uma liberdade sobretudo emancipadora, que não almeja simplesmente a substituição do opressor.

Está claramente presente, por exemplo, na entrevista que fiz com a Fanny para celebrar os seus 95 anos. Ao questioná-la sobre a pertinência do tema da conversa, ela diz, sem titubear, sem reproduzir uma frase feita: “Devemos discutir TUDO”.

Humanidade, Ciência, Cultura, Música e Arte

A intrincada relação entre religião e política tem gerado consequências profundas para a sociedade. A disputa por valores, muitas vezes polarizada e alimentada por discursos de ódio, tem fragilizado o tecido social e minado a democracia. É preciso resgatar o diálogo e a tolerância como pilares para a construção de um futuro mais humano e solidário.

A página da celebração coletiva dos mais de 100 anos da Fanny segue aberta para consulta e mais contributos. Espero que continue a ser mais um canal para discutirmos tudo, com humanidade, ciência, cultura, música e arte.

FELIZ ANIVERSÁRIO VOVÓ!

v. 01/10



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