Fanny 100

O que dizer a uma mãe de 100 anos...

Ruth Lopes


O que dizer a uma mãe de 100 anos...

 

[...]Não acredito em deuses, tampouco em outra vida.

Não desperdiço a que tenho. Vivi.

Não estou triste. [...]

 

                                                                                                         Brêtas, A. In Cem vezes uma, ‎Editora Jandaíra,

                                                                                                         1ª edição, São Paulo, 2020

 

            Como consegue ser assim feliz!?

Afinal, passou por tantas, tanta coisa passou por ela e umas tantas outras fingiu que não viu e nem compreendeu completamente...

Acho que o mais parecido é o mano Rui. Eu herdei os trejeitos e expressões e talvez, um pouquinho do que gostaria de ser e fazer: estudar, autonomia financeira... Os mais velhos, David e Igor (falecido), se incumbiram de zelar pelo lugar do meu Pai e fizeram com empenho e umas pitadas de rabugice.

O mais novo dos irmãos foi o Acílio Alberto. Nos apareceu após ela dar uma entrevista para uma publicação on-line. O conhecemos quando completou 80 anos e a chamava de “Mãe Fanny”. Recebeu-o de braços abertos, como extensão do nosso Pai, para espanto de todos. Afinal, era um grande segredo familiar que ela traduzia assim: - Eu tinha 8 anos?!

Pude não ficar presa às discordâncias, facilitando muito nossa tácita cumplicidade. Nos anos que ficou viúva fomos reconstruindo nosso cotidiano paralelamente, com rotinas que se complementavam. Irineo fez parte ativa da trama. Primeiro ajudou a organizar a pequenina moradia e, depois, deixou-nos a casa onde pensava envelhecer. 

Reproduzimos o ambiente de Luanda: um entra e sai constante. Amigos e família nunca a deixam só. Mensagens, recadinhos, beijinhos, presentinhos disparados constantemente, enfeitam o dia a dia.

Curioso vê-la em desenvolvimento, se adaptando e adaptando o entorno. Haja criatividade!

Isso nunca lhe faltou e creio ser um ensinamento que perpassou as gerações. Se uma porta se fecha, existem outras por abrir. Tudo regado a uma doce palavra.

A descrição da memória do meu nascimento carrega esse tom literário-poético: precisei ficar entre duas garrafas cheias de água aquecida. Dizem que parecia um bebê astronauta. Assim não se fala da penúria, da falta de suportes na saúde e, - mesmo o homem ainda não tendo chegado à lua- a minha imagem é sempre associada a esse feito.

Enfim, é assim que me sinto junto a todos: um pouco observadora - pairando sobre a realidade -, tocada pelos subtextos e completamente amarrada as transparentes cordas e nós afetivos, principalmente aqueles que da Fanny ainda me atravessam e ditam algumas decisões.

                                                                                                             Ruth



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